A Presunção de Inocência e o Absurdo da Inversão do Ônus da Prova: Reflexões a Partir do Caso Daniel Alves
- Pedro Roberto Donel
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
A presunção de inocência é um pilar fundamental do direito penal em qualquer democracia que se preze. Consagrada no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Brasileira, ela estabelece que todo acusado é inocente até que se prove o contrário, cabendo ao acusador – geralmente o Estado ou, em alguns sistemas, a vítima – apresentar evidências robustas que sustentem a culpa. Esse princípio protege o indivíduo contra arbitrariedades e garante que a condenação seja resultado de um processo justo, baseado em provas concretas, e não em suposições ou narrativas frágeis. Contudo, casos como o de Daniel Alves, ex-jogador de futebol brasileiro, expõem uma tendência preocupante: a erosão desse direito em nome de uma suposta “justiça imediata”, onde o homem acusado de crimes sexuais é obrigado a provar que o ato foi consentido, invertendo o ônus da prova e desafiando a lógica jurídica.

No caso de Daniel Alves, julgado na Espanha, o Tribunal de Barcelona condenou-o, em fevereiro de 2024, a quatro anos e seis meses de prisão por estupro, com base no depoimento de uma jovem que alegou ter sido agredida sexualmente por ele no banheiro de uma área VIP da boate Sutton, em Barcelona, em dezembro de 2022. Alves passou 14 meses preso preventivamente antes da sentença, uma medida que já levanta questionamentos sobre o uso desproporcional da prisão cautelar. Segundo relatos, a jovem foi voluntariamente com Alves para o banheiro, onde teriam ocorrido atos sexuais, incluindo sexo oral – ela teria praticado o ato em Alves – e penetração vaginal por trás, com a moça encostando as mãos na parede. Ela afirmou que o sexo não foi consentido, alegando que Alves a forçou e a agrediu com tapas, enquanto ele defendeu que tudo foi consensual. Exames médicos não encontraram lesões vaginais que corroborassem violência sexual, apenas um ferimento no joelho, o que alimentou a controvérsia.
O juízo de primeira instância considerou o depoimento da vítima suficiente para a condenação, apesar de inconsistências apontadas pela defesa e da ausência de provas materiais inequívocas que sustentassem a narrativa de estupro. Alves, por sua vez, complicou sua defesa ao mudar de versão várias vezes: inicialmente negou conhecer a mulher, depois admitiu a relação sexual, justificando as contradições pelo medo de que sua esposa, Joana Sanz, descobrisse a traição. Em março de 2025, o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha reverteu a decisão, absolvendo Alves por unanimidade, ao julgar que o relato da vítima, com suas contradições – como a compatibilidade do ferimento no joelho com a posição descrita e a falta de evidências físicas de resistência –, não era sólido o bastante para sustentar a culpa além de qualquer dúvida razoável, critério essencial em processos penais.
Esse desfecho reacende um debate crucial: o absurdo de exigir que o acusado prove o consentimento em casos de acusações de crimes sexuais. Em um sistema que respeita a presunção de inocência, o ônus de provar a ausência de consentimento recai sobre quem acusa, não sobre quem se defende. No caso de Alves, o tribunal de primeira instância parece ter adotado uma lógica invertida, dando peso desproporcional ao depoimento da vítima, mesmo diante de suas fragilidades e da ausência de elementos como lesões compatíveis com violência sexual ou testemunhas diretas. A jovem alegou tapas e coerção, mas vídeos de segurança mostraram-na saindo do banheiro sem sinais imediatos de angústia, e os exames médicos não confirmaram a narrativa de agressão vaginal. Ainda assim, Alves foi condenado inicialmente, o que sugere uma presunção de culpa baseada mais na palavra da acusadora do que em provas concretas.
Essa prática não é apenas um desvio jurídico; é um sintoma de um contexto cultural e social mais amplo, onde a pressão por condenações rápidas em casos de violência sexual frequentemente colide com os princípios do devido processo legal. Compreender e punir crimes sexuais é uma demanda legítima e urgente, mas isso não pode justificar a flexibilização de garantias fundamentais. Quando o depoimento de uma vítima, por mais emotivo que seja, torna-se a única base para uma condenação – ignorando contradições ou a falta de provas físicas – abre-se espaço para erros judiciais graves. A absolvição de Alves veio justamente porque o tribunal superior reconheceu que o relato isolado, frente às evidências disponíveis, não atendia ao padrão de “além da dúvida razoável”. Isso não significa desacreditar vítimas, mas exigir que o sistema judicial opere com rigor e imparcialidade, protegendo tanto os direitos de quem acusa quanto de quem é acusado.
A inversão do ônus da prova em casos como esse também levanta questões práticas. Como alguém pode provar consentimento em um encontro privado, sem testemunhas ou registros objetivos? No caso de Alves, sua tentativa de negar o encontro inicialmente, por medo de consequências pessoais, só foi abandonada quando o sêmen encontrado na vítima o vinculou ao ato – um fato que ele então reconheceu como consensual. Exigir que o acusado demonstre a concordância mútua é impor uma tarefa quase impossível, que frequentemente recai em uma batalha de narrativas opostas. Sem provas materiais ou testemunhais consistentes, o risco de condenações injustas aumenta exponencialmente.
O caso Daniel Alves é emblemático porque ilustra os perigos de abandonar a presunção de inocência em favor de uma justiça apressada. A condenação inicial, sustentada por um depoimento questionável e pela pressão de uma narrativa unilateral, privou um homem de sua liberdade por mais de um ano, enquanto a absolvição posterior expôs a fragilidade do processo. Isso não diminui a gravidade de crimes sexuais nem o sofrimento de vítimas reais, mas reforça a necessidade de equilíbrio: punir os culpados sem sacrificar os inocentes. A verdadeira justiça exige provas, não presunções – e jamais pode partir do princípio de que o acusado deve provar sua inocência. Quando isso acontece, o que se perde não é apenas a liberdade de um indivíduo, mas a credibilidade de todo o sistema jurídico.
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