Igualdade Material, Política Woke e a Importação Equivocada de Discursos no Mundo Jurídico
- Luís André Beckhauser
- 6 de mar.
- 5 min de leitura
Por que falar sobre o conceito de igualdade na OAB PLURAL?
No cenário jurídico brasileiro, o debate sobre igualdade, ações afirmativas e políticas de inclusão se tornou cada vez mais necessário, especialmente diante da importação acrítica de discursos estrangeiros, como a "crítica" à chamada política woke. No Brasil, onde a Constituição adota expressamente o princípio da igualdade material, negar a necessidade de medidas afirmativas governamentais e privadas significa ignorar a estrutura normativa que rege nosso sistema jurídico e social.
A OAB PLURAL, comprometida com a diversidade e a pluralidade, tem a responsabilidade de promover reflexões que desmistifiquem narrativas distorcidas e fortaleçam o papel do direito como instrumento de justiça social. Neste contexto, é essencial abordar como o conceito de igualdade é tratado no Brasil e nos Estados Unidos, evidenciando as diferenças fundamentais entre os sistemas jurídicos e o impacto da interpretação equivocada desses princípios.
A Constituição Brasileira de 1988 é uma constituição moderna, construída sob a ótica dos direitos fundamentais e da necessidade de corrigir desigualdades estruturais. Já a Constituição Americana, redigida no século XVIII, nasceu de um contexto muito distinto: a Revolução Americana e a busca pela igualdade entre os colonos brancos em relação ao Império Britânico. A igualdade ali concebida era, essencialmente, a "igualdade dos brancos para os brancos", sem qualquer preocupação com grupos marginalizados como negros escravizados, indígenas e mulheres.

Diferente da nossa Constituição, que passou por um processo de amadurecimento conceitual, a Constituição dos EUA se mantém como um documento essencialmente rígido, com poucos princípios explícitos e raras emendas ao longo dos séculos. Isso levanta uma questão crítica: uma constituição tão antiga e pouco modificada conseguiu envelhecer de forma adequada? Quando vemos o debate americano sobre igualdade ainda preso ao formalismo do século XVIII e suas críticas ecoando pelo mundo, influenciando até o Brasil, a resposta parece ser negativa. Essa influência distorcida acaba se sobrepondo aos direitos conquistados na Constituição de 1988, um documento moderno, que consagrou a igualdade material e o compromisso com a erradicação das desigualdades.
Este artigo se insere justamente nesse debate, trazendo uma análise crítica sobre como discursos conservadores vêm deturpando o significado de igualdade, atacando políticas afirmativas e propagando falácias como o "racismo inverso". Além disso, busca esclarecer a distinção entre igualdade formal e material, demonstrando que, ao contrário do que sugerem esses discursos, o ordenamento jurídico brasileiro não apenas permite, mas exige ações concretas para a superação das desigualdades estruturais.
Com essa perspectiva, convidamos a advocacia e toda a comunidade jurídica a refletirem sobre a importância da defesa da igualdade material, da inclusão e da justiça social, pilares que devem nortear o exercício do direito e a atuação da OAB.
A Importação do Termo Woke e a Diferença Entre Igualdade no Brasil e nos EUA
A importação do termo woke para o Brasil ocorreu sem uma compreensão precisa de seu contexto original nos Estados Unidos. Nos EUA, o termo surgiu no movimento negro para descrever a consciência sobre injustiças raciais e sociais, mas, ao longo do tempo, foi ressignificado por setores conservadores como um rótulo pejorativo para pautas progressistas e políticas de diversidade. No Brasil, esse uso importado se tornou um rótulo genérico para atacar políticas afirmativas, debates sobre equidade de gênero e outras iniciativas voltadas à inclusão.
A principal diferença entre os dois países está na forma como o Estado lida ou "deveria lidar" com a igualdade e com políticas afirmativas:
1. Brasil – Igualdade Material como Princípio Constitucional
O princípio da igualdade material estabelece que, para que a igualdade seja de fato alcançada, o Estado deve adotar medidas concretas para reduzir desigualdades. Isso significa que tratar todos de forma idêntica não basta, pois parte-se do reconhecimento de que nem todos possuem as mesmas condições de partida.
A Constituição de 1988 adota expressamente esse princípio, determinando que o Estado deve atuar ativamente para corrigir desigualdades históricas e estruturais. Isso se reflete em cotas raciais e sociais em universidades, reserva de vagas para pessoas com deficiência e políticas de inclusão. O princípio da isonomia substancial embasa essas medidas, reconhecendo que há desigualdades que precisam ser combatidas para garantir oportunidades justas para todos.
2. EUA – Igualdade Formal e Resistência às Ações Afirmativas
Nos Estados Unidos, a Constituição adota uma visão mais próxima da igualdade formal, garantindo que todos sejam tratados de maneira idêntica perante a lei, sem considerar disparidades históricas. No entanto, o país teve iniciativas de ação afirmativa (como cotas para minorias raciais em universidades e no mercado de trabalho), que enfrentam crescente resistência judicial. Recentemente, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais algumas políticas de cotas raciais em universidades, alegando que violariam o princípio da igualdade formal.
O Erro da Crítica às Políticas Woke
Aqueles que atacam pejorativamente as políticas woke geralmente partem de uma visão conservadora que confunde igualdade com uniformidade e ignoram a própria estrutura constitucional brasileira. Argumentam contra políticas afirmativas sob o pretexto de um suposto "racismo inverso" ou até do absurdo preconceito contra heterossexuais, sem perceber que esses discursos partem de uma falsa premissa: a de que todos já partem das mesmas condições e que qualquer tentativa de corrigir desigualdades seria uma "injustiça" contra os historicamente privilegiados.
O problema dessa visão é que ela se apoia apenas na igualdade formal, sem considerar que a igualdade material é um princípio constitucional no Brasil. A Constituição não só reconhece a existência de desigualdades estruturais, como exige a adoção de medidas concretas para reduzi-las. Negar isso é rejeitar o próprio texto constitucional e perpetuar injustiças sob o disfarce de um discurso meritocrático falacioso.
Ser contrário às políticas afirmativas significa rejeitar a ideia de igualdade material, que busca corrigir desigualdades estruturais por meio de ações específicas. Esse posicionamento geralmente se alinha a uma visão crítica da política woke, que enfatiza mudanças institucionais e culturais para promover diversidade e equidade. Ao defender apenas a igualdade formal, que trata todos de maneira idêntica perante a lei, sem considerar fatores históricos e sociais, ignora-se que, na prática, a ausência de medidas afirmativas pode perpetuar desigualdades existentes, impedindo que certos grupos tenham as mesmas oportunidades reais.
Conclusão
No contexto jurídico, a defesa da igualdade material é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. O discurso que critica a política woke e as políticas afirmativas sem considerar o arcabouço constitucional brasileiro apenas reforça privilégios e distorce o verdadeiro papel do direito na busca por equidade.
A OAB PLURAL reafirma seu compromisso com a diversidade e a inclusão e convida a advocacia a refletir sobre a importância dessas medidas na promoção da justiça social. Afinal, a igualdade não se trata apenas de uma garantia abstrata, mas de um compromisso real com a transformação estrutural necessária para que todos tenham oportunidades verdadeiramente justas.
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